Avulsos poéticos

Vinte e cinco vontades
Adormeces de olhos arregalados
No temor da madrugada que não chega
Deixas para a frente promessas caladas
Cargas pesadas que o medo já não carrega
Vais comendo da gamela enjoada
Inchada de fome
Entornada de vaidade
Orgulho avassalador disfarçado de liberdade
Não comas, ficas gorda, não fica bem no retrato
Não bebas, ficas bêbada, não é decente para o teu trato
Não sorrias, algum recato
E esse batom,
Vermelho, cor de cravo, olha que mancha o prato
Retomas a compostura aniquilada pela liberdade
O fato saia-e-casaco abaixo do joelho
Os costumes puídos com mão de ferro pelo sexo que te crava o asco à lapela
Na mentezinha tacanha que te abocanha e distorce o pensamento
No discurso inflamado,
Irado, que te prende o movimento
Reclamas o voto, já o tens
Reclamas direitos, já os tens
Reclamas igualdade, já a tens
Que te importa que seja apenas no papel
É para isso que eles servem
Os papéis
Todos os papéis
E o teu, qual é?
Fizeste o jantar?
Mudaste a fralda?
O miúdo está a chorar
Acabou o pão
Acabou o leite
É preciso fazer sopa
O relatório é para ontem
Outro filho?
Já preparaste a apresentação?
Amanhã vem o novo estagiário
Já acabaste?
Dói-te a cabeça
Andas com outro?
Hoje não janto
E essas olheiras
Não me deste um beijo
És pior que as freiras
Não te despediste
Não despediste
Despe-te
Estás despedida
Desprendida
Despida
Desdita
Desvalida
Inválida
E a vontade?
Adormeces de olhos arregalados
Ávidos da madrugada por despontar
Botão de cravo florido
Malnutrido que apenas a vontade não soube regar
Acorda
Acorda, mulher
Acorda a mulher que enxergas no espelho
Acorda a mulher que Abril ergueu
Acorda, mulher, que ele não se faz velho
Nem espera a hora certa para te arrancar do breu
A enxada aguarda as mãos calejadas do ócio
O arado, as pernas trémulas de indecisão
A terra não é estéril
Brotam raivas debruadas de vontades
Emergem caminhos pontilhados de vontades
De vinte e cinco vontades armadas de verdades
De vinte e cinco vontades hasteadas de ubiquidades
De vinte e cinco vontades pintadas com as cores da liberdade
Hora de ponta
Caminhas sozinho, cosido à noiteVens à tona inspirar, não tens ar sempre aí em baixo
Murmuras preces ao acaso, reprimidas pelos gritos que não soltas
Suplicas graças por entre as chapadas que ignoras
Hora de ponta
Quando chegas?
Queres esconder a pele escura, misturá-la na noite
No medo que te rouba o emprego
No pânico que te olha à socapa à espera que lhe roubes a carteira
Corres esfalfado, plataforma adentro na ânsia de apanhar
A última carruagem
Falhas por uma gravata branca, que à unha negra não deixam
passar à frente
Já lá vem outro combóio
Atenção, senhores passageiros, incidente na linha três
A circulação encontra-se interrompida

Âmago
Acordo contigo mirrado dentro de mim depois de uma noite suada, estafada de vontade. Dormes. A tua cabeça repousada no meu peito, antes ávida, de lábios molhados a roçagar os meus mamilos túmidos, agora tão vulnerável, à mercê do que eu lhe queira fazer. Uma festa, uma carícia, um arrancar voraz, qual louva-a-deus saciada. Deixo-me ficar. Quieta, na contemplação do teu corpo nu sobre o meu. Deslizo os meus dedos nos teus cabelos, desço à nuca, arrepio-te as costas. Ajeitas-te em mim sem nunca saíres. Não acordas. Os teus braços abarcam-me as ancas rotundas, agora adormecidas num torpor morno, depois de dedilhares uma melodia acabada de inventar na minha vulva, depois de degustares os travos acres que dela se desprendem na intensidade do fulgor. Prendes-me num abraço possante de que me não quero livrar. Estás a dormir?, sussurro na tua orelha suculenta. Anuis, na ausência de resposta. Mordisco o lóbulo, enrolo-o na minha língua, escorro as unhas pelas tuas costas, devagar, em linhas lânguida do pescoço às nádegas. As veias vulneráveis à minha vontade. Sigo-lhes o rumo, sorrateio por elas, vejo o azul a correr sob a pele esmaecida. Poderia travá-las se quisesse e nunca saberias, poderia abri-las e sugar-lhes o sangue pulsante que te mantém quente sobre mim. Não o faço. O teu corpo acorda célula ante célula, desperta, aguçando a vida que paira em mim. Sinto-te acordar dentro de mim. Desenho-te o contorno com as pontas dos dedos. Posso fazer-te o que quiser, tenho a tua vida à mercê da minha vontade.
Bom dia, saúdas-me de olhos ainda fechados, cegos na confiança das minhas mãos pousadas em ti. Iluminas o meu corpo com o teu sorriso honesto. Acreditas. Deixo-me ir. Devolvo a credulidade.

Breve explicação sobre a origem da morte
Um beijo
uma carícia
um toque sorrateiro
um pedaço de pele arrepiada
uma volúpia arrebatada
um corpo
dois corpos
dois corpos suaves
suados
colados
entrelaçados
fundidos no prazer
Esquecidos no descrer que percorre os músculos em espasmos orgásmicos
Dois gâmetas
Duas células desconhecidas
Unidas no fecundo profundo de um corpo descrente
Convalescente do prazer acabado de sentir
Ignorante do porvir
Duas células a formar uma
a formar duas
a formar quatro
A formar quatrocentas
Quatro centos
Quatro ventos de vida
Da vida que se esvai assim que começa
Sem contrapartida

Fragilidades
Risco um fósforo
Acendo a vela
Percebo o teu corpo
Ondulante
Chegas-te a mim
Sedento de abrigo
Procuras um porto
Uma enseada que te acolha
Deslizas o rosto pelo meu ombro
O peito pela minha mama
A respiração pelo meu colo
Nus
As velas ardem
As chamas agigantam as silhuetas na parede
Dois corpos fundidos
Misturados
Como as ceras a derreter
Sem pressa de queimar
Até os pavios esgotados lamberem os sobejos e a luz se extinguir
Aí luzimos nós
Numa explosão de centelhas orgásmicas
O breu à nossa volta iluminado
Início

Metamorfose
Arfam os algozes prenhes de insensatez
Lavam os olhos ferozes no sangue ainda morno das vítimas exauridas
Subjugadas à tacanhez das mentes esmarridas
Sugam o último bafo de tenacidade que as faz resistir uma última vez
Também se cansam, os carrascos
Também se acobardam ante a carnificina
Também se penitenciam no temor da chacina
Também se martirizam com os olhos rasos de asco
Mão ante mão, cobram os sentidos dispersos
Apoucam os apertos dos que sucumbem aos seus caprichos
Tratam-nos acima de deus ou abaixo de bichos
Deixam-nos à mercê da morte ou doutro fim mais perverso
Chegam a casa depois de mais um dia de cão
Beijam os filhos, os esposos, finda a jorna de trabalho
Recolhem ao lar exaustos, sentidos, feitos em cascalho
Temerosos pelo dia seguinte e a inépcia de gritar não

Leituras
Quero ler-te
Percorrer cada letra do teu poema marcado a pena em brasa na tua pele que me afaga
Quero ler-te
Desenhar cada palavra da tua prosa gravada a tinta-da-china no teu peito que me acolhe
Quero ler-te
Contornar cada frase do teu texto decalcado no meu corpo pelo suor quente que nos derrete e funde numa ode ao ardor

41 rpm
Encolhes a mão em busca do calor que não vem
Estendes a mão para dentro de ti no temor do afago que te detem
Escondes a mão carente no desvario do orgulho que te afasta
Esqueces a mão que tenta alcançar-te por achares que a tua te basta
Arrogas-te o direito de não pedir conforto à mão que te busca
Sonegas-lhe o privilégio de se abrir para ti apenas porque te assusta
Alegas quarenta e uma razões para manter
Será que não arranjas uma razão para mudar?
Sobejam-te quarenta e uma razões para morrer
Será que não encontras uma razão para mimar?

Acantonados
Deslizo a pele sobre os gumes afiados que a rasgam
Num afago de poesia
Será o teu amor que escorre do pulso
À deriva pelo meu corpo
Qual barco perdido na maré vaza
Que me oculta os sentidos e desperta o ardor da espera?
Deslizo a carne sobre os gumes afiados que a dilaceram
Numa carícia de prosa
Será o teu amor que se esvai pela brecha aberta no pulso
À deriva pela minha alma
Qual bote vagando incerto nas fragas despenhadas na areia
Que me adormece a razão e anestesia o fulgor da inquietação?
Deslizo o osso sobre os gumes afiados que o afagam
Num festim de dramaturgia
Será o teu amor que se esboroa pelos poros ausentes do pulso que já não é
À deriva pelo nada que me preenche
Qual verme alimentando-se famélico do desespero
Que me corrói a agrura e amolece a revolta?
Deslizo o vazio sobre os gumes afiados que o já não sentem
Num mimo velado de amor líquido
Foi o teu amor que passou
Escorreito pelo meu todo
Qual ganchorra que me atracou ao fundo do mar
E me deixou ali na cilada perene que me danou

Não voltes nunca ao lugar onde foste feliz
Não voltes nunca ao lugar onde foste feliz
O corpo habitua-se
A mente também
Corres o risco de te lembrares porque sorris
Embarcas no logro de pensar sem impores um porém
Não voltes nunca ao lugar onde foste feliz
Apaga o rasto
Come as migalhas que deixaste pelo caminho
Livra-te do lastro
Avança sozinho
Não voltes nunca ao lugar onde foste feliz
Queres recordar o futuro
Seguir enviesado rumo à tua raiz
Mas um enorme monturo ergue-se à tua passagem
Bloqueia o acesso à tua mente beliz
Não voltes nunca ao lugar onde foste feliz
Resiste à tentação
Foge do espelho inclemente
Recusa a emoção
Mantém-te inerte, inane, latente
Não voltes nunca ao lugar onde foste feliz
Tira a mão à palmatória
Dedica uma derrota ao corpo morto que te detém
Vive sem escapatória do medo que sempre vem