Avulsos poéticos

Este texto está publicado na fanzine Poética do Tumulto, editora Traça, 2024
Este texto está publicado na fanzine Poética do Tumulto, editora Traça, 2024

Vinte e cinco vontades

Adormeces de olhos arregalados

No temor da madrugada que não chega

Deixas para a frente promessas caladas

Cargas pesadas que o medo já não carrega

Vais comendo da gamela enjoada

Inchada de fome

Entornada de vaidade

Orgulho avassalador disfarçado de liberdade

Não comas, ficas gorda, não fica bem no retrato

Não bebas, ficas bêbada, não é decente para o teu trato

Não sorrias, algum recato

E esse batom,

Vermelho, cor de cravo, olha que mancha o prato

Retomas a compostura aniquilada pela liberdade

O fato saia-e-casaco abaixo do joelho

Os costumes puídos com mão de ferro pelo sexo que te crava o asco à lapela

Na mentezinha tacanha que te abocanha e distorce o pensamento

No discurso inflamado,

Irado, que te prende o movimento

Reclamas o voto, já o tens

Reclamas direitos, já os tens

Reclamas igualdade, já a tens

Que te importa que seja apenas no papel

É para isso que eles servem

Os papéis

Todos os papéis

E o teu, qual é?

Fizeste o jantar?

Mudaste a fralda?

O miúdo está a chorar

Acabou o pão

Acabou o leite

É preciso fazer sopa

O relatório é para ontem

Outro filho?

Já preparaste a apresentação?

Amanhã vem o novo estagiário

Já acabaste?

Dói-te a cabeça

Andas com outro?

Hoje não janto

E essas olheiras

Não me deste um beijo

És pior que as freiras

Não te despediste

Não despediste

Despe-te

Estás despedida

Desprendida

Despida

Desdita

Desvalida

Inválida

E a vontade?

Adormeces de olhos arregalados

Ávidos da madrugada por despontar

Botão de cravo florido

Malnutrido que apenas a vontade não soube regar

Acorda

Acorda, mulher

Acorda a mulher que enxergas no espelho

Acorda a mulher que Abril ergueu

Acorda, mulher, que ele não se faz velho

Nem espera a hora certa para te arrancar do breu

A enxada aguarda as mãos calejadas do ócio

O arado, as pernas trémulas de indecisão

A terra não é estéril

Brotam raivas debruadas de vontades

Emergem caminhos pontilhados de vontades

De vinte e cinco vontades armadas de verdades

De vinte e cinco vontades hasteadas de ubiquidades

De vinte e cinco vontades pintadas com as cores da liberdade

Hora de ponta

Caminhas sozinho, cosido à noite
Vens à tona inspirar, não tens ar sempre aí em baixo
Murmuras preces ao acaso, reprimidas pelos gritos que não soltas
Suplicas graças por entre as chapadas que ignoras
Hora de ponta
Quando chegas?
Queres esconder a pele escura, misturá-la na noite
No medo que te rouba o emprego
No pânico que te olha à socapa à espera que lhe roubes a carteira
Corres esfalfado, plataforma adentro na ânsia de apanhar
A última carruagem
Falhas por uma gravata branca, que à unha negra não deixam
passar à frente
Já lá vem outro combóio
Atenção, senhores passageiros, incidente na linha três
A circulação encontra-se interrompida

Âmago

Acordo contigo mirrado dentro de mim depois de uma noite suada, estafada de vontade. Dormes. A tua cabeça repousada no meu peito, antes ávida, de lábios molhados a roçagar os meus mamilos túmidos, agora tão vulnerável, à mercê do que eu lhe queira fazer. Uma festa, uma carícia, um arrancar voraz, qual louva-a-deus saciada. Deixo-me ficar. Quieta, na contemplação do teu corpo nu sobre o meu. Deslizo os meus dedos nos teus cabelos, desço à nuca, arrepio-te as costas. Ajeitas-te em mim sem nunca saíres. Não acordas. Os teus braços abarcam-me as ancas rotundas, agora adormecidas num torpor morno, depois de dedilhares uma melodia acabada de inventar na minha vulva, depois de degustares os travos acres que dela se desprendem na intensidade do fulgor. Prendes-me num abraço possante de que me não quero livrar. Estás a dormir?, sussurro na tua orelha suculenta. Anuis, na ausência de resposta. Mordisco o lóbulo, enrolo-o na minha língua, escorro as unhas pelas tuas costas, devagar, em linhas lânguida do pescoço às nádegas. As veias vulneráveis à minha vontade. Sigo-lhes o rumo, sorrateio por elas, vejo o azul a correr sob a pele esmaecida. Poderia travá-las se quisesse e nunca saberias, poderia abri-las e sugar-lhes o sangue pulsante que te mantém quente sobre mim. Não o faço. O teu corpo acorda célula ante célula, desperta, aguçando a vida que paira em mim. Sinto-te acordar dentro de mim. Desenho-te o contorno com as pontas dos dedos. Posso fazer-te o que quiser, tenho a tua vida à mercê da minha vontade.

Bom dia, saúdas-me de olhos ainda fechados, cegos na confiança das minhas mãos pousadas em ti. Iluminas o meu corpo com o teu sorriso honesto. Acreditas. Deixo-me ir. Devolvo a credulidade.

Breve explicação sobre a origem da morte

Um beijo

uma carícia

um toque sorrateiro

um pedaço de pele arrepiada

uma volúpia arrebatada

um corpo

dois corpos

dois corpos suaves

suados

colados

entrelaçados

fundidos no prazer

Esquecidos no descrer que percorre os músculos em espasmos orgásmicos

Dois gâmetas

Duas células desconhecidas

Unidas no fecundo profundo de um corpo descrente

Convalescente do prazer acabado de sentir

Ignorante do porvir

Duas células a formar uma

a formar duas

a formar quatro

A formar quatrocentas

Quatro centos

Quatro ventos de vida

Da vida que se esvai assim que começa

Sem contrapartida

Fragilidades

Risco um fósforo

Acendo a vela

Percebo o teu corpo

Ondulante

Chegas-te a mim

Sedento de abrigo

Procuras um porto

Uma enseada que te acolha

Deslizas o rosto pelo meu ombro

O peito pela minha mama

A respiração pelo meu colo

Nus

As velas ardem

As chamas agigantam as silhuetas na parede

Dois corpos fundidos

Misturados

Como as ceras a derreter

Sem pressa de queimar

Até os pavios esgotados lamberem os sobejos e a luz se extinguir

Aí luzimos nós

Numa explosão de centelhas orgásmicas

O breu à nossa volta iluminado

Início 

O poema está publicado na newsletter especial dos 50 anos do 25 de Abril do Clube de Leitura Transatlânticos
O poema está publicado na newsletter especial dos 50 anos do 25 de Abril do Clube de Leitura Transatlânticos

Metamorfose

Arfam os algozes prenhes de insensatez

Lavam os olhos ferozes no sangue ainda morno das vítimas exauridas

Subjugadas à tacanhez das mentes esmarridas

Sugam o último bafo de tenacidade que as faz resistir uma última vez


Também se cansam, os carrascos

Também se acobardam ante a carnificina

Também se penitenciam no temor da chacina

Também se martirizam com os olhos rasos de asco


Mão ante mão, cobram os sentidos dispersos

Apoucam os apertos dos que sucumbem aos seus caprichos

Tratam-nos acima de deus ou abaixo de bichos

Deixam-nos à mercê da morte ou doutro fim mais perverso


Chegam a casa depois de mais um dia de cão

Beijam os filhos, os esposos, finda a jorna de trabalho

Recolhem ao lar exaustos, sentidos, feitos em cascalho

Temerosos pelo dia seguinte e a inépcia de gritar não

Leituras

Quero ler-te

Percorrer cada letra do teu poema marcado a pena em brasa na tua pele que me afaga

Quero ler-te

Desenhar cada palavra da tua prosa gravada a tinta-da-china no teu peito que me acolhe

Quero ler-te

Contornar cada frase do teu texto decalcado no meu corpo pelo suor quente que nos derrete e funde numa ode ao ardor

41 rpm

Encolhes a mão em busca do calor que não vem

Estendes a mão para dentro de ti no temor do afago que te detem

Escondes a mão carente no desvario do orgulho que te afasta

Esqueces a mão que tenta alcançar-te por achares que a tua te basta

Arrogas-te o direito de não pedir conforto à mão que te busca

Sonegas-lhe o privilégio de se abrir para ti apenas porque te assusta

Alegas quarenta e uma razões para manter

Será que não arranjas uma razão para mudar?

Sobejam-te quarenta e uma razões para morrer

Será que não encontras uma razão para mimar?

Acantonados

Deslizo a pele sobre os gumes afiados que a rasgam

Num afago de poesia

Será o teu amor que escorre do pulso

À deriva pelo meu corpo

Qual barco perdido na maré vaza

Que me oculta os sentidos e desperta o ardor da espera?


Deslizo a carne sobre os gumes afiados que a dilaceram

Numa carícia de prosa

Será o teu amor que se esvai pela brecha aberta no pulso

À deriva pela minha alma

Qual bote vagando incerto nas fragas despenhadas na areia

Que me adormece a razão e anestesia o fulgor da inquietação?


Deslizo o osso sobre os gumes afiados que o afagam

Num festim de dramaturgia

Será o teu amor que se esboroa pelos poros ausentes do pulso que já não é

À deriva pelo nada que me preenche

Qual verme alimentando-se famélico do desespero

Que me corrói a agrura e amolece a revolta?


Deslizo o vazio sobre os gumes afiados que o já não sentem

Num mimo velado de amor líquido

Foi o teu amor que passou

Escorreito pelo meu todo

Qual ganchorra que me atracou ao fundo do mar

E me deixou ali na cilada perene que me danou

Não voltes nunca ao lugar onde foste feliz

Não voltes nunca ao lugar onde foste feliz

O corpo habitua-se

A mente também

Corres o risco de te lembrares porque sorris

Embarcas no logro de pensar sem impores um porém


Não voltes nunca ao lugar onde foste feliz

Apaga o rasto

Come as migalhas que deixaste pelo caminho

Livra-te do lastro

Avança sozinho


Não voltes nunca ao lugar onde foste feliz

Queres recordar o futuro

Seguir enviesado rumo à tua raiz

Mas um enorme monturo ergue-se à tua passagem

Bloqueia o acesso à tua mente beliz


Não voltes nunca ao lugar onde foste feliz

Resiste à tentação

Foge do espelho inclemente

Recusa a emoção

Mantém-te inerte, inane, latente


Não voltes nunca ao lugar onde foste feliz

Tira a mão à palmatória

Dedica uma derrota ao corpo morto que te detém

Vive sem escapatória do medo que sempre vem

Rafaela Lacerda / Autora / Todos os direitos reservados
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