Avulsos dramáticos
A noite mais longa do ano
A barra oblíqua (/) indica a sobreposição de falas.
O travessão (—) no fim de uma fala indica uma interrupção.
PERSONAGENS: MIGUEL, PAULO
PEQUENO-ALMOÇO
Um pequeno apartamento moderno. Uma única divisão. A cozinha domina o espaço: balcão central, onde se insere o fogão, com dois bancos altos, dispostos em redor, para as refeições. Além disto, uma cama, uma mesinha de cabeceira e uma cómoda. Tudo no mesmo espaço, sem grande margem de manobra, dadas as exíguas medidas. Uma porta do lado direito dá acesso à marquise; a saída para a rua é do lado esquerdo, em frente da cama.
Torradas com manteiga e café
Paulo está de pijama e chinelos, sentado ao balcão da cozinha. Come torradas e bebe café, com a descontração natural de quem está em casa. Miguel está sentado na cama, com a estranheza de quem acaba de acordar num
sítio onde nunca esteve.
MIGUEL Os dois?
PAULO Sim. Açúcar?
MIGUEL Juntos? Se faz favor.
PAULO Sim. Quantas colheres?
MIGUEL Na mesma cama? Duas.
PAULO (leva uma caneca de café a Miguel) Vês mais alguma? Toma.
MIGUEL Não. Obrigado. Porquê?
PAULO Normalmente, as pessoas só têm uma cama.
MIGUEL Sofá? Não tens leite?
PAULO Mudei-me há pouco tempo, ainda não arranjei um. Não bebo.
MIGUEL Porquê?
PAULO Não sei, não gosto. Sabe-me mal.
MIGUEL Não, o sofá.
PAULO Não é urgente, não durmo no sofá. Não queres? Olha que a manteiga é boa. E o tomate e o queijo aqui em cima... Que maravilha.
MIGUEL Não tenho fome. Mas nós...
PAULO Sim. Devias comer. Não comes nada há horas. Hum... Mesmo boa – tem assim umas pedrinhas de sal a notar-se... E com este pãozinho...
MIGUEL Não quero. Na mesma cama?
PAULO Sim. Come. E o manjericão dá-lhe um toque de...
MIGUEL Não tenho fome.
PAULO Tenho bolachas. Mas olha que este pão... Mistura de trigo, centeio e malte. É o que diz aqui.
MIGUEL Não quero. Juntos?
PAULO És um bocadinho repetitivo. Já te disse, pelo menos umas seis vezes, que dormimos juntos na mesma cama, e...
MIGUEL E o que é que aconteceu?
PAULO O que é que aconteceu? Se calhar vou fazer mais. Bruschetta. Aprendi com um amigo italiano. Tens a certeza que não queres?
MIGUEL (murmurando) Isso são torradas.
PAULO Hã?
MIGUEL Nada, nada...
PAULO Come, deves ter fome. Fazia-te bem. Não queres?
MIGUEL Parece que tu também és um bocadinho repetitivo...
PAULO Não. Acho que devias comer, só isso. /
MIGUEL Que mania que as pessoas têm de...
PAULO / Depois da noite de ontem, não...
MIGUEL O que é que aconteceu entre nós?
PAULO A única coisa que podia ter acontecido: dormimos. Juntos.
MIGUEL O que é que nós fizemos?
PAULO A única coisa que tu conseguias fazer: dormir.
MIGUEL Dormir?
PAULO Sim. Naquele estado, não dava para fazer mais nada, acredita. E olha que eu tentei. Juro.
MIGUEL Dormimos juntos?
PAULO Porra, pá, tenho de explicar tudo? Sim, viemos pra minha casa, mas tu tavas tão bêbado, que não conseguias fazer nada, além de dormir. Só tenho uma cama... Querias que te deixasse a dormir aí num canto, era? Como já reparaste, não tenho sofá.
MIGUEL Tu não...
PAULO Não querias que eu dormisse no chão, na minha própria casa, pois não?
MIGUEL Não é isso, é que...
PAULO Se não me apeteceu saltar-te pra cima? Claro, desde o bar. Mas... e depois? Tavas a dormir. Que gozo é que isso me ia dar?
MIGUEL Hum...
PAULO Tens a certeza que não queres? Estão mesmo boas, pá. Quentinhas...
MIGUEL Não me apetece.
PAULO Fazes mal. Deves ter o estômago todo desgastado. Vomitaste tantas vezes, que...
MIGUEL Vomitei?
PAULO Tu... Não te lembras mesmo de nada, pois não?
MIGUEL Lembro, claro que... quer dizer... mais ou menos...
PAULO Porque é que achas que estás com um pijama que não é teu?
MIGUEL Este pijama é teu?
PAULO Eu vivo sozinho.
MIGUEL Então, quer dizer...
PAULO Quer, quer dizer.
MIGUEL Mas tu...
PAULO Se não estivesses tão bêbado, tinha visto muito mais, acredita.
MIGUEL Então e...
PAULO A tua roupa e a minha estão na máquina.
MIGUEL A tua? Eu também vomitei na—
PAULO Pois. E aqui costuma estar um tapete. Não tenho sofá, mas tenho tapete. Queres mais um cafezinho? Deve doer-te a cabeça.
MIGUEL Que vergonha.
PAULO Não, é na boa. Ouve, eu também já fiz muitas figuras tristes. (Tira o pijama e começa a vestir-se. Umas calças de ganga, uma T-shirt de manga comprida e uma camisola polar. Pouca cor, que ele não é espalhafatoso) Nunca pareci foi tão desesperado.
MIGUEL Eu parecia desesperado?
PAULO Sim, mas isso já parecias antes de estares bêbado.
MIGUEL Parecia? Aonde é que vais?
PAULO Perdão?
MIGUEL Estás a vestir-te. Vais sair?
PAULO Pois.
MIGUEL Aonde é que vais?
PAULO Onde é que vou?
MIGUEL Sim. Estás a vestir-te, vais sair, hoje é dia de Natal, não se trabalha, aonde é que vais? Vais ter com quem?... (Paulo olha para ele, apatetado) Ai, desculpa. Desculpa, desculpa. Que estou para aqui a dizer... Desculpa. Vou-me já embora, eu... Desculpa. Que estupidez. A sério, eu não queria, eu...
PAULO (enquanto se veste) Vou almoçar com os meus pais. E o meu irmão. Natal... Sabes como é. Eu não ligo. Mas eles... Ui... Então o puto... A sério. Nunca o vi assim. Deve ser da idade. Quinze anos, é o que dá. Ele é prendas, é comidas, é a árvore, é os bonequinhos todos, é o...
MIGUEL Não tens árvore de Natal.
PAULO Achas? Sou alérgico aos pinheiros.
MIGUEL Podias ter uma daquelas de plástico.
PAULO Pra quê? Mais tralha pra limpar o pó?
MIGUEL Eu tenho uma. E um presépio.
PAULO Parabéns...? (Acaba de se arranjar) Bem, tenho de ir andando, tá a ficar tarde. Fica à vontade, tás em casa. É um T0, eu sei, o quarto tá no meio da cozinha, não tenho sofá, mas olha... É o que se arranja. Também, com aquilo que ganho, não dava pra um palacete...
MIGUEL O que é que fazes?
PAULO De quê?
MIGUEL Da vida.
PAULO Faço uns cartazes, uns logótipos, uns postais de Natal, uns...
MIGUEL És designer.
PAULO O papel do curso diz que sim.
MIGUEL É bonito.
PAULO É. Se quiseres passar o resto da vida a contar tostões... Bem, tenho mesmo de ir embora – não os vou deixar à espera, não é?
MIGUEL Fazes bem.
PAULO Olha, ao pé da máquina de lavar tá a tábua e o ferro, se quiseres passar a tua roupa. Pelo menos a camisa. Come à vontade do que houver no frigorífico.
MIGUEL Obrigado.
PAULO Há umas lasanhas congeladas que é só meter no micro-ondas e ficam prontas, se não quiseres ter trabalho. É para aqueles dias em que tou todo rebentado e não me apetece cozinhar. Tá aqui uma chave. Quando saíres, tranca a porta e deixa-a na caixa do correio, se faz favor. É o 3.º frente. Terceiro frente. Queres que escreva num papel?
MIGUEL Não é preciso. Terceiro frente.
PAULO Isso. Quatro voltas na fechadura. OK?
MIGUEL Sim. Quatro voltas.
PAULO (encaminhando-se para a porta da rua) Perfeito. Então, adeus. Pode ser que a gente se encontre por aí um dia destes. Ah, já agora, feliz Natal. (Fechando a porta atrás de si) Eu sou o Paulo.
MIGUEL Miguel.
A luz baixa. Miguel, pari passu, deita-se devagar.
Bica cheia
O mesmo espaço, algumas horas depois. Miguel continua deitado.
PAULO (entrando em casa) Tu?
MIGUEL Hã? Desculpa, ainda não me fui embora.
PAULO Não, sem problemas. Tás bem? Sentes-te bem?
MIGUEL Sim...
PAULO Como ainda tás de pijama...
MIGUEL A roupa não secou. Não a tirei da máquina.
PAULO A máquina também seca a roupa.
MIGUEL Não sabia. Fiquei aqui...
PAULO Ressaca.
MIGUEL Pois... Comi uma lasanha.
PAULO Fizeste bem. Tava boa?
MIGUEL Hum... Vomitei.
PAULO Estas congeladas nunca são grande coisa, pois não?
MIGUEL Não.
PAULO Pois.
Silêncio.
MIGUEL O almoço... foi bom?
PAULO Sim. Normal. São sempre iguais, todos os anos. Peru, bolo-rei, fatias douradas... Não há grande novidade.
MIGUEL Ainda bem.
PAULO Queres que vá à farmácia buscar qualquer coisa para a ressaca?
MIGUEL Não, não é preciso, obrigado. Tenho de ir embora. Não tens nada?
PAULO Não. Nunca tenho ressaca.
MIGUEL Não?
PAULO Só se fizer misturas. Mas como não faço...
MIGUEL Eu também não. Nem costumo beber. Ontem foi uma exceção.
PAULO Não me pareceu muito excecional.
MIGUEL O quê?
PAULO Ontem.
MIGUEL Não?
PAULO Não.
MIGUEL Desculpa.
PAULO Não tenhas problemas. Não somos nada um ao outro.
MIGUEL Pois não. Mas podemos ser.
PAULO Sim, um dia, quem sabe? Podes vir a ser meu cunhado, por exemplo. Não, que o puto não é gay e ainda é virgem. Que totó. Eu, com quinze anos, já tinha ficado bem frustrado e a pensar que era a maior merda do mundo. A gaja, também, não ajudou nada. Ao menos deu pra perceber que aquilo não era a minha onda. E tu?
MIGUEL Eu? O quê?
PAULO Com que idade...
MIGUEL Com que idade o quê?
PAULO Ai, ó...
MIGUEL Miguel.
PAULO Isso, Miguel. Não te vais fazer de santo. Eu já te vi nu.
MIGUEL Não é nada disso, é que...
PAULO Pronto, OK, não queres contar, não contas. Só pensei que... pronto, pudéssemos partilhar estas coisas. Afinal, nunca mais nos vamos ver, e não é vergonha nenhuma e, /
MIGUEL Vinte.
PAULO / além disso, não há... Vinte?
MIGUEL O que é que tem?
PAULO Nada. Não pensei que... Que idade é que tens?
MIGUEL Trinta e três. Porquê?
PAULO Nada. Era só pra meter conversa.
MIGUEL Vou-me já embora. Estou aqui a invadir a tua casa e... Ainda por cima no dia de Natal. Tu vives sozinho, não deves estar habituado a ter gente a invadir-te a cama e o pijama.
PAULO Nem a cama nem o pijama se queixaram, pois não? Café?
MIGUEL Acho que não.
PAULO Ficas o tempo que for preciso. Vou fazer para mim. Não queres mesmo?
MIGUEL Não. Obrigado.
PAULO Ah, se quiseres tomar banho, há toalhas lavadas no armário debaixo do lavatório. Há bocado esqueci-me de dizer.
MIGUEL Obrigado.
PAULO E gel de banho, champô, essas coisas.
MIGUEL Obrigado.
PAULO Não são coisas muito XPTO, é tudo do supermercado, mas... Se calhar não cheiram tão bem como os teus, mas, olha, usa. Tu ontem cheiravas tão bem... (Entreolham-se em silêncio; Paulo, repentinamente, vai levantar a mesa do pequeno-almoço; continua a falar) Ah, muito importante: se quiseres fumar – não sei se fumaste enquanto não estive... Não cheira a nada... se tivesses fumado, sentia-se o cheiro. Bem, se quiseres fumar, vai ali à janela da cozinha ou então lá dentro, na marquise. Normalmente, fumo lá. Se tivesse uma sala, fumava na sala, agora assim... Qualquer dia arranjo uma casa nova, um bocadinho maior. Quer dizer, isto, só pra mim, chega. E se tiver visitas, é coisa de passagem. Nunca duram muito tempo. Tás a bater um recorde... Tenho um cinzeiro na marquise. Às vezes, ponho-o ali no parapeito da janela, mas tenho sempre medo de o partir. É grande, de vidro. Fui eu que o desenhei. Queres ver? (Sai, vai à marquise e volta com um cinzeiro enorme) E então?
MIGUEL Então o quê?
PAULO Que tal?
MIGUEL É bonito.
PAULO Bonito...
MIGUEL Sim...
PAULO O que achas?
MIGUEL De quê?
PAULO Do cinzeiro.
MIGUEL É... É grande...?
PAULO Pois... E mais?
MIGUEL Mais?
PAULO Sim.
MIGUEL É bom, é... de vidro?
PAULO Claro que é de vidro. E as cores?
MIGUEL Quais cores?
PAULO As cores do cinzeiro.
MIGUEL Estão boas.
PAULO Boas... Achas que estão bem equilibradas?
MIGUEL Sim.
PAULO Foi a primeira coisa que desenhei.
MIGUEL Hum...
PAULO Quer dizer, foi a primeira coisa paga. O meu primeiro trabalho. Pra uma loja de decoração. Depois deram-me o protótipo. Até tem aqui um defeito no bordo. Queres ver? (Dá o cinzeiro a Miguel) Tá limpinho. Cuidado, é pesado.
Miguel agarra no cinzeiro, mas as mãos estão trôpegas e deixa-o cair. Parte-se em vários bocados.
PAULO Porra.
MIGUEL Ai, meu Deus! Desculpa. Eu... Eu...
PAULO Deixa lá.
MIGUEL Eu não queria, eu...
PAULO Não te preocupes. Isto cola-se.
MIGUEL Eu compro-te um cinzeiro novo. Igualzinho. Diz-me onde é que se compra e eu vou lá.
PAULO Eu não quero um cinzeiro novo. Pra quê?
MIGUEL Então, para pôr a cinza.
PAULO Mas eu quero é este.
MIGUEL Desculpa. Que vergonha...
PAULO Na boa. Assim fica com mais dois ou três defeitos e pronto. Ainda fica mais único.
MIGUEL Eu vou-me embora, eu vou-me já embora.
PAULO Espera, falta a tua roupa. Vou buscá-la. (Põe os pedaços do cinzeiro em cima do balcão da cozinha e sai)
MIGUEL (levanta-se, a custo, e tenta encaixar os cacos) Porra...
PAULO (voltando com um molho de roupa) Deixa, deixa. Eu depois trato disso, não te preocupes. Assim é que já não dá.
MIGUEL O quê?
PAULO Isto do fumar. Toma. (Dá as roupas a Miguel)
MIGUEL Isto? Obrigado. O quê?
PAULO Fumar lá dentro na marquise e usar este cinzeiro. Acho que a camisa tá boa, não?
MIGUEL Está. É para vestir a camisola por cima. Eu não fumo. Está quente.
PAULO Não fumas?
MIGUEL Não. Está mesmo quente.
PAULO Claro, acabei de a tirar da máquina. E cheira bem, diz lá que não. Mas ontem à noite...
MIGUEL Cheira. É de quê? Tenho o nariz um bocado entupido. Só fumo quando não estou bem. Não gosto nada daquilo.
PAULO A sério? Lavanda. Agora não quero outro. Então pra que é que fumas?
MIGUEL Então, para... Para ganhar coragem.
PAULO Coragem? Pra quê?
MIGUEL Para...
PAULO Ah, OK, OK, já percebi, já percebi. E os uísques, também?
MIGUEL Pois. Principalmente os uísques.
PAULO Bem, tu ontem transbordavas coragem.
MIGUEL Desculpa.
PAULO Na boa. Estas coisas acontecem. Nada que um tubo de cola não resolva. Porque é que não tavas bem?
MIGUEL Desculpa. Nós não nos conhecemos de lado de nenhum, estou aqui a...
PAULO (pousa a mão, levemente, na perna de Miguel) Já disse que o pijama não se importa nada.
MIGUEL Mas o dono do pijama... E do cinzeiro...
PAULO Ainda se importa menos. Não te preocupes, que há muito espaço cá em casa. Isto parece pequeno, mas é um casarão.
MIGUEL Nota-se...
PAULO É, a sério. Até dava pra viver com alguém e tudo. Se não tiveres planos mais interessantes... Café?
MIGUEL É melhor não. Não costumo beber tanto café. Já me dói o estômago, não quero que doa ainda mais.
PAULO (preparando um café) Tu é que sabes. Falei de ti lá em casa.
MIGUEL Falaste? Bebes esta quantidade de café todos os dias?
PAULO Há dias em que bebo mais.
MIGUEL Porquê?
PAULO Então, quando tenho prazos mais apertados e...
MIGUEL Porque é que falaste de mim?
PAULO A minha mãe perguntou-me como é que tinha sido a minha noite e...
MIGUEL Contaste-lhe?
PAULO Claro. É minha mãe.
MIGUEL Contas tudo à mamã?
PAULO Tá descansado, que não lhe conto que partiste o cinzeiro.
MIGUEL Não era isso que eu... Desculpa. Mas contaste-lhe tudo? Disseste-lhe que vim para tua casa e que vomitei tudo e...
PAULO Que vomitaste, não. Não era muito bonito, o teu vomitado.
MIGUEL Há vomitados bonitos?
PAULO Hã?
MIGUEL Disseste que o meu vomitado não é muito bonito. Parece que já viste algum bonito.
PAULO Já vi muitos vomitados na vida. Este não é o meu primeiro Natal...
Pausa.
MIGUEL Passaram o almoço a falar de mim?
PAULO Não, não és assim tão importante.
MIGUEL Tão importante? Quer dizer que sou um bocadinho?
PAULO Foste o primeiro gajo, primeiro, com quem dormi. Dormi.
MIGUEL Pois... O almoço foi bom?
PAULO Normal. Ainda há bocado perguntaste.
MIGUEL Foi a tua mãe que cozinhou?
PAULO Ouve, se não te apetece conversar, não é preciso. Vou colar o cinzeiro.
MIGUEL Posso ajudar?
Escuro.
ALMOÇO
O mesmo espaço, um ano depois. Tudo igual, exceto um pufe ao lado da cama e um aquário ao fundo, ao pé da janela. O cinzeiro, colado, está no parapeito.
Lasanha congelada
No balcão da cozinha estão dois sacos de supermercado: um com três lasanhas congeladas, uma caixa de crepes, também congelados, e uma embalagem de gelado de baunilha; e outro com dónutes, bolos de chocolate e cápsulas de café.
PAULO (fazendo café) Açúcar, duas colheres?
MIGUEL Uau. Como é que te lembras?
PAULO Não lembro. Normalmente, é assim que as pessoas bebem o café.
MIGUEL Mas tu bebes sem açúcar.
PAULO Eu? Bebo. Como é que sabes?
MIGUEL Ainda me lembro.
PAULO Foi há um ano.
MIGUEL Eu sei. Acho que fiquei com vontade de te fazer um café.
PAULO A sério?
MIGUEL Ouve, eu não estava nas melhores condições de...
PAULO Não tavas nas melhores condições de nada.
MIGUEL Pois não. Desculpa lá a ressaca e...
PAULO Já nem me lembro. Tá bom, o café?
MIGUEL Ótimo.
PAULO É. Grande invenção.
MIGUEL O quê?
PAULO As cápsulas. Não é preciso sujar nada. É só pôr na máquina, carregar no botão, e pumba!, já tá. E, ainda por cima, o café é mesmo bom, não é?
MIGUEL É.
PAULO Pois é.
Silêncio.
PAULO Mais café?
MIGUEL Não, obrigado. Eu não costumo beber muito café. É por causa do estômago.
PAULO Ah, desculpa, não sabia. Preferes chá?
MIGUEL Não é preciso, obrigado. Eu gosto de café.
PAULO (enquanto procura o chá) Eu também gosto de amendoins com piripiri. Não posso é comer. Olha, não tenho chá.
MIGUEL Porquê?
PAULO Acabou. Também, não gosto muito. Parece que tou a beber água com relva.
MIGUEL Não, os amendoins.
PAULO Ah! Sou alérgico.
MIGUEL A sério? Isso é tão aborrecido. Além dos pinheiros, também os amendoins.
PAULO Como é que sabes que sou alérgico aos pinheiros?
MIGUEL Falaste disso no ano passado.
PAULO Hã? Boa memória, sim senhor. A propósito de quê?
MIGUEL Não me posso queixar... Árvores de Natal.
PAULO Pois, não tenho... Então, mas conta lá. Como é que vai a vida? Corre-te bem?
MIGUEL Tem dias.
PAULO Nem bem nem mal, antes pelo contrário, como dizia o meu avô. Como é que ainda te lembravas da morada? Foi há um ano... Tavas todo ressacado.
MIGUEL Boa memória...?
PAULO É verdade. Já nem me lembrava.
MIGUEL Curei aqui a maior, a única, ressaca da minha vida, é natural que me lembre destas coisas. Acho que queria voltar.
PAULO Querias?
MIGUEL Tens um sofá.
PAULO Tenho. Há muito tempo.
MIGUEL No ano passado não tinhas.
PAULO (esforça-se por se recordar dessa altura) Pois, é possível. Acho que não. Não, não tinha. Comprei-o nos saldos a seguir ao Natal. Não é bem um sofá, é um pufe, mas faz o mesmo efeito. Só dá pra um. Constrangimentos financeiros.
MIGUEL Ainda moras sozinho.
PAULO Sim. Quer dizer, mais ou menos.
MIGUEL Desculpa, estou a atrapalhar, eu não sabia, eu... Vou-me já embora. Que mania a minha de...
PAULO Calma. Tenho um peixe. É o Neno.
MIGUEL O Nemo?
PAULO Não, é mesmo Neno. Com ene. Era para ser Nemo, como o dos desenhos animados, mas como tem umas manchinhas pretas na cabeça que parecem uma cabeleira aos caracóis, ficou Neno... Lembras-te do Neno? Do guarda-redes?
MIGUEL Sim. Que até cantava, não era?
PAULO Pois era. Umas foleiradas românticas...
MIGUEL Nunca liguei muito a futebol, mas lembro-me, claro. Quem não se lembra?
PAULO Queres ver?
MIGUEL O quê?
PAULO O Neno.
MIGUEL Pode ser.
PAULO Tá ali ao fundo, ao pé da janela.
Encaminham-se para lá.
MIGUEL O cinzeiro...
PAULO Sim, fui eu que o desenhei.
MIGUEL Eu sei.
PAULO Sabes?
MIGUEL Sim, parti-to, no ano passado.
PAULO Pois foi.
MIGUEL Disto aposto que te lembravas...
PAULO (rindo) Tinha uma vaga ideia.
MIGUEL Estou a ver... Ficou impecável.
PAULO Ainda demorei uns dias.
MIGUEL Mas valeu a pena. E a cola, que tinha secado...
PAULO Eh, já nem me lembrava. Tava seca no bico, não era?
MIGUEL Sim, mas por dentro estava boa. E eu tentei enfiar-lhe o garfo no bico, mas aquilo rebentou e ficaste coberto de cola.
PAULO A sério que te lembras disso tudo? Bem, tens mesmo boa memória.
MIGUEL Não acredito que não te lembres. Estavas capaz de me bater.
PAULO Nunca.
Pausa.
MIGUEL Não o vejo.
PAULO Oh, quase nunca o vejo, também. Anda sempre ali pelo meio das algas e das outras tralhas todas. Sinceramente, não percebo por que raio um peixe precisa disto tudo. Não é que eles brinquem, não é?
MIGUEL É para se sentirem mais felizes. Estava a falar do cinzeiro.
PAULO Do cinzeiro?
MIGUEL O defeito que tinha...
PAULO Tá aqui. Passa aqui o dedo.
MIGUEL Ah, sim. Mas não se vê.
PAULO É das cores. Olha, ali. Ah, já fugiu. Neno...
MIGUEL Ele não te vai ouvir...
PAULO Não custa tentar.
MIGUEL Daqui a pouco aparece outra vez...
PAULO Anda ali, nada de um lado para o outro, depois vai pra dentro daquela casotinha ali em baixo. Não me liga nenhuma. Já o tenho há uns quatro meses, podia ser menos arisco.
MIGUEL Assim não é grande companhia.
PAULO Já tou habituado... Eu queria um gato, mas achei que não ia ser muito bom. Não sou muito fácil de aturar, sabes?
MIGUEL Quem diria.
PAULO Pois é.
Ficam a olhar para o aquário, em silêncio, à espera de ver o peixe. Falam
ao mesmo tempo.
MIGUEL Sabes, no ano passado...
PAULO Não estava à espera de te...
Calam-se os dois.
PAULO Fala, fala.
MIGUEL Não, fala tu. Por favor.
PAULO Não era nada de especial. Não tava à espera de te ver, só isso. Tanto tempo depois. Pensei que já nem te lembrasses que eu existia.
MIGUEL Tu já não te lembravas de que eu existia?
PAULO Claro que me lembrava. Afinal, foste o primeiro gajo com quem dormi. Isso deixa memórias.
MIGUEL Tu nunca dormiste com outro homem? Dormir, dormir.
PAULO O meu pai e o meu irmão não contam, pois não?
MIGUEL (reprovando) Hum, hum.
PAULO Então... Ah, uma vez. Hum, não...
MIGUEL Então?
PAULO Quer dizer... Uma vez foi quase. Partilhei a tenda com um amigo no Sudoeste. Ainda adormeci, mas a meio da noite... acordámos... muito calor no Alentejo... Eu nem sabia que ele também era gay... (Miguel olha-o, surpreendido) Que é? Sabes tudo sobre os teus amigos, é?
MIGUEL Se forem mesmo meus amigos...
PAULO Eh pá, nós não éramos mesmo amigos, do estilo «eu dou a vida por ti, tu dás a vida por mim», essas coisas. Éramos colegas, saíamos à noite, copos, jantares de curso... Mas sempre em grupo, nunca íamos só os dois... Exceto naquele verão. Cortaram-se todos à última hora. Éramos pra ir com mais malta, mas... (Pausa) Julguei que nunca mais te fosse ver. E tive pena, sabes? Cerveja? Tenho preta e normal.
MIGUEL Porquê?
PAULO Gosto de variar.
MIGUEL Querias ver-me outra vez?
PAULO E aí estás tu. Com bom aspeto. Mais...
MIGUEL Sóbrio?
PAULO É... Isso faz diferença, não faz? Preta?
MIGUEL Acho que sim. Normal.
PAULO Ia fazer o almoço. Queres ficar? Ou, se preferires, podemos jantar logo. Ou tens jantar de Natal?
MIGUEL Tenho. Não quero dar trabalho. Ias fazer o almoço?
PAULO Não dás. Não é trabalho nenhum. Mas não te quero prender. Qual é o espanto?
MIGUEL Não prendes. Eu gostava de ficar um bocadinho. E tu vais cozinhar. As pessoas mudam, não é?
PAULO Ótimo. Nem todas.
MIGUEL Queres ajuda?
PAULO Pra quê?
MIGUEL Com o almoço.
PAULO (tira as lasanhas de dentro do saco) Não. Só se for pra tirar as lasanhas do plástico e metê-las no micro-ondas.
MIGUEL Ainda comes disso...
PAULO Há coisas que nunca mudam. E têm um toque de requinte, com os espinafres e o queijo. Feta, acho eu. Vê lá o que diz aí. Aposto que pagavas um balúrdio por uma lasanha destas aí num restaurante qualquer da moda.
MIGUEL Mas estas são congeladas. Não, é emental.
PAULO Ou isso.
MIGUEL Ouve, nós não nos conhecíamos de lado nenhum, eu... Ainda te parti o cinzeiro.
PAULO Ficou como novo.
MIGUEL Ficou. Na verdade, não se passou nada entre nós, mas...
PAULO Passou-se mais do que se se tivesse passado alguma coisa.
Silêncio longo. Observam o movimento do micro-ondas até este parar, com o som característico.
MIGUEL Tens conseguido pagar a renda a tempo?
PAULO Sim. Depende dos meses. Depende do trabalho. Sabes que isto de trabalhar por conta própria tem muito que se lhe diga.
MIGUEL Quem me dera. Podes fazer o que quiseres. Não tens horário fixo...
PAULO Nem ordenado... E tu? Tens tido trabalho? Já não me lembro o que é que fazes...
MIGUEL Não cheguei a dizer.
PAULO Então?
MIGUEL Então o quê?
PAULO O que é que fazes?
MIGUEL Eu?
PAULO O Neno vive de rendimentos...
MIGUEL Sou médico.
PAULO Médico? Médico, médico?
MIGUEL Há médicos não-médicos?
PAULO Não, é que... Não tens ar de médico.
MIGUEL Os médicos têm um ar específico?
PAULO Não, mas... Nunca vi um médico bêbado. É isso. E, normalmente, são mais betinhos.
MIGUEL Ficaste traumatizado comigo, não foi?
PAULO Nada disso. Mas gosto muito mais de te ver assim. Apesar de estares com aquele ar desesperado de quando nos vimos pela primeira vez.
MIGUEL Eu também gosto mais de te ver assim. Estás mais nítido. Da outra vez parecias um bocado desfocado.
PAULO São os teus olhos.
MIGUEL Hoje é noite de Natal. O que vais fazer? Vais àquele bar, como no ano passado? Porque é que não a passas com a tua família? O teu pai, o teu irmão mais novo... Tu adora-los. O teu irmão vai ficar triste.
PAULO Lembras-te que tenho um irmão e tudo.
MIGUEL Não me esqueço das coisas importantes. Não vais àquele bar?
PAULO O meu irmão é importante? Este ano não me apetece.
MIGUEL Não sei, mas o irmão do teu irmão... Porquê?
PAULO Quem? Porquê o quê?
MIGUEL Porque é que não vais àquele bar?
PAULO Não quero ficar pendurado mais um ano.
Escuro.
Dónutes fresquinhos
O mesmo espaço, pouco tempo depois. Comem dónutes.
PAULO Não são porcarias, são muito fresquinhos.
MIGUEL Cheios de açúcar e gordura.
PAULO Por isso é que já enfardaste dois.
MIGUEL Mas não como disto todos os dias.
PAULO Tinham sido acabados de pôr na montra, quando passei. Fiquei com os olhos lá pregados.
MIGUEL Foste a esta padaria aqui ao lado do prédio? Tem um ótimo aspeto.
PAULO O quê? Achas? Até me ofendes, porra. No supermercado. Fui lá comprar o almoço e o jantar.
MIGUEL (espreitando para dentro dos sacos) E trouxeste lasanhas, dónutes, bolinhos de...
PAULO Petits gâteaux.
MIGUEL Seja. Petits gâteaux de chocolate, uma caixa de gelado...
PAULO Baunilha. É o que eu mais gosto.
MIGUEL Prefiro chocolate.
PAULO Então, tens aí os crepes.
MIGUEL Crepes... Tudo muito saudável. E muito natalício. Se calhar, já punhas isto tudo no congelador, daqui a pouco está derretido.
PAULO É o médico que está a falar agora, é? Isto é uma consulta? Olhe, doutor, tenho sentido, ultimamente...
MIGUEL Que parvo.
PAULO Não, Paulo.
MIGUEL Eh... Eu sempre soube o teu nome.
PAULO Porque é que decidiste aparecer um ano depois?
MIGUEL Quase um ano. Este ano apareci mais cedo.
PAULO Pois é, que estranho. O ano passado, encontrámo-nos quase à meia-noite, parecia que íamos abrir as prendas.
MIGUEL Já embrulhaste as tuas?
PAULO Não dou prendas a ninguém. E tu?
MIGUEL Eu dou.
PAULO E já as embrulhaste?
MIGUEL Já. Mandei embrulhar nas lojas. Não ligas mesmo nenhuma ao Natal, pois não?
PAULO Não, não ligo.
MIGUEL Hum...
PAULO Não me vais falar da cena religiosa, pois não? Ninguém liga a ponta dum corno a isso. É tudo treta.
MIGUEL Há quem ligue. Eu gosto. Acredito. Muito. E há quem goste do Natal só porque se sente feliz e em paz e...
PAULO Tá bem, pronto. Mas não me podem obrigar a gostar do Natal. Nem a festejar. O meu irmão gosta, adora aquilo. Fica todo animadinho com a cena das prendas e das comidas e isso. Este ano tem uma festa e tudo, vê lá. Tou mesmo a ver que vai ter a primeira grande ressaca da vida dele. É amanhã à noite. E a primeira queca, também. A sério, não olhes assim para mim. Tenho a certeza. Aposto o que quiseres. Aos dezasseis não é mau, pois não? Comprei-lhe uma caixa de preservativos e uma de Guronsan.
MIGUEL Prenda de Natal?
PAULO Não, claro, a minha mãe matava-me. Dei-lhas ontem, uma cena entre nós. Ficou um bocado envergonhado, mas aceitou e não disse nada. Fiz bem, não fiz? Não quero que tenha desgostos.
MIGUEL Sim...
PAULO Achas que não devia ter comprado?
MIGUEL Não sei...
PAULO Achas que não devia...
MIGUEL Sei lá. O irmão é teu, tu é que sabes como ele é. Tens tido muitos desgostos?
PAULO Que achas?
Silêncio.
PAULO Vou fazer crepes.
MIGUEL Depois de termos comido isto tudo?
PAULO Não queres? Têm recheio de chocolate. (Vai ao frigorífico e tira uma lata de chantili) E... tarã!
MIGUEL O que é isso?
PAULO Chantili...
MIGUEL Ah. Não percebo como é que não estás um pote e cheio de doenças.
PAULO Eu não como estas coisas todos os dias. Só quando não me apetece cozinhar. E isso é muito raro.
MIGUEL Eu vejo-te sempre a comer porcarias.
PAULO Só me viste duas vezes, separadas por 364 dias. Se calhar, não viste o suficiente.
MIGUEL Dá-me um, então. Com muito chantili.
PAULO Eu sabia. Isto não faz assim tão mal, pois não?
MIGUEL Não. Se calhar, é um problema meu. Que horas são?
PAULO Seis e vinte e cinco.
MIGUEL Já? Estamos a comer há horas. É tarde. Vou ter de ir andando.
PAULO Mas ainda é tão cedo. Ah, a consoada, não é?
MIGUEL Hum...
PAULO Tens mesmo de ir?
MIGUEL Vou andando. Ainda tenho umas coisas para fazer.
PAULO Prendas?
MIGUEL Não. Tenho de tratar de uns assuntos.
PAULO Trabalho?
MIGUEL Não.
PAULO O que tens pra fazer não pode ficar pra amanhã?
MIGUEL Pode.
PAULO Então podes ficar?
MIGUEL Não.
PAULO Fica.
MIGUEL Não dá. Tenho de ir. Tenho mesmo de resolver isto.
PAULO Está alguém a morrer?
MIGUEL Espero que não.
PAULO Então, fica. Tratas disso depois.
MIGUEL Tem de ser hoje.
PAULO Porquê?
MIGUEL Porque combinámos assim.
PAULO Combinámos?
MIGUEL Com um amigo...
PAULO Ah! Já podias ter dito. Nem sei pra que é que vieste.
MIGUEL O quê? Achas que se eu fosse comer outro gajo vinha ter contigo antes?
PAULO Sei lá... aperitivo...? Vou fumar um cigarro; quando saíres, fecha a porta. Se faz favor.
MIGUEL Espera. (Paulo para à porta da marquise) Tenho de devolver umas coisas que tenho lá em casa a uma pessoa. Já andamos nisto há meses, mas quero ver-me livre das coisas hoje. Uns discos e uns livros.
PAULO (virando-se) Queres boleia? Eu levo-te. Fazes o que tens a fazer e depois vamos beber um copo. Que tal? E depois vais para a consoada, juro. Tens de chegar a que horas?
MIGUEL Quando chegar. Lá em casa nunca jantamos antes das nove da noite. E tenho carro.
PAULO Ah. O ano passado não tinhas.
MIGUEL Tinha, mas não ia conduzir bêbado, não é? Tu também não conduziste. Pois não?
PAULO Com uma memória dessas, e não te lembras de nada daquela noite...
MIGUEL Conduziste? Tu conduziste bêbado?
PAULO Não, não conduzi. Passas o Natal com quem?
MIGUEL Os meus pais, os meus irmãos, os meus tios, os meus primos, os meus...
PAULO Bem, a família nunca mais acaba. Há sempre novidades.
MIGUEL Nunca há novidades. São sempre as mesmas pessoas.
PAULO Podes mudar isso.
MIGUEL Nunca muda.
PAULO Só se não quiseres.
MIGUEL Tenho de ir.
PAULO Gostava que ficasses mais um bocado. Mas se tens mesmo de ir... Fazemos assim: deixas aqui o carro, eu levo-te a casa dos teus pais...
MIGUEL É em casa dos meus tios.
PAULO Levo-te a casa dos teus tios, e quando estiveres despachado, dás-me um toque.
MIGUEL Não tenho o teu número.
PAULO Passas a ter... Vou-te buscar e vamos beber um copo. E amanhã vens cá buscar o carro. E almoçamos. Que tal?
MIGUEL Amanhã não posso. Estou a trabalhar. Não vais almoçar aos teus pais?
PAULO Posso não ir. Não é obrigatório. Tenho um ano inteiro pra almoçar lá todos os dias. Prometo que cozinho. Tás a trabalhar? Mas é dia de Natal.
MIGUEL As pessoas não escolhem o dia em que ficam doentes.
PAULO Então, vamos beber um copo agora. Antes de ires para a consoada.
MIGUEL Tenho de ir resolver uns assuntos, já disse. Só espero não chegar tarde.
PAULO Aos assuntos?
MIGUEL À consoada. Tenho mesmo de ir. Bem bastou o ano passado.
PAULO Tavas de serviço?
MIGUEL Não. No ano passado... Quer dizer... Tenho de ir embora. Agora.
PAULO Porquê?
MIGUEL Porque tenho coisas que tratar.
PAULO Tratas depois.
MIGUEL Tem de ser hoje.
PAULO Porquê?
MIGUEL Porque é Natal.
PAULO Hã?
MIGUEL Tu não compreendes.
PAULO Se não explicares...
MIGUEL (encaminha-se para a porta) Tenho de ir embora. Já.
PAULO Espera. Porque é que te vais sempre embora assim? E eu? Porque é que...
MIGUEL Ouve...
PAULO Não, vai. A sério. Vai.
MIGUEL Paulo...
PAULO Sai.
Miguel sai.
PAULO Espera. Voltamos a ver-nos?
Miguel volta, dá-lhe um beijo, sai. Paulo fica sozinho, com a porta da rua
aberta. A luz baixa.
Chá de cidreira
A luz sobe. A porta continua aberta. Em cima do balcão da cozinha está o
cinzeiro. Está partido em dois bocados. Miguel assoma à porta, espreita à
procura de Paulo, mas não vê ninguém.
MIGUEL Paulo?
PAULO (assomando à porta da marquise) Tu, outra vez?
MIGUEL (quase sem se fazer ouvir) Olá...
PAULO Olá?
MIGUEL Eu...
PAULO O que é que tás aqui a fazer? Não devias tar a cear com a tua família? E a abrir prendas e a cantar «Jingle bells, jingle bells, jingle all the way»?
MIGUEL Não tinha muita fome. Saí cedo. Não me apetecia ir para casa. E não sabia para onde é que havia de ir.
PAULO E quando não sabes pra onde hás de ir, bates à porta.
MIGUEL Não foi preciso bater. Estava aberta.
PAULO Tenho de ter cuidado. Ladrões, estranhos...
MIGUEL Eu...
PAULO Não me vais dizer que não és um estranho, pois não?
MIGUEL Não. Trouxe chá de cidreira.
PAULO Eu não gosto de chá.
MIGUEL Eu gosto. Ao pequeno-almoço.
PAULO Tou a ver. Mas vais já tomar o pequeno-almoço?
MIGUEL Entro às oito.
PAULO Ainda é só um quarto pras duas.
MIGUEL E trouxe leite, também. Posso pôr no frigorífico?
PAULO Pra quê?
MIGUEL Para não azedar.
PAULO Azeda?
MIGUEL Se estiver uma noite inteira fora do frigorífico...
PAULO (indica-lhe o frigorífico) Não quero que tenhas pra aí uma gastrite.
Miguel vai ao frigorífico. Repara que o cinzeiro está em cima do balcão da
cozinha, mas está partido.
MIGUEL Ah... O que é que aconteceu?
PAULO Acidente. Amanhã colo. Outra vez.
MIGUEL Precisas de ajuda?
PAULO Não.
MIGUEL Queres ajuda?
Paulo encolhe os ombros.
MIGUEL Tens cola?
PAULO Não sei.
MIGUEL Se tiveres, onde é que está?
PAULO Segunda gaveta da direita.
Miguel procura nas gavetas todas.
PAULO Direita. A outra direita.
MIGUEL Acho que não há.
PAULO Amanhã compro mais.
MIGUEL Ficou frágil desde que se partiu?
PAULO (murmurando) Ficamos sempre.
MIGUEL Perdão?
PAULO Afinal, o que é que vieste cá fazer outra vez?
MIGUEL Eu preciso de te dizer uma coisa. Depois vou-me embora e nunca mais apareço, se não quiseres. Prometo.
PAULO Não faças promessas. Nunca se cumprem.
MIGUEL Cumprem. No ano passado—
PAULO Não interessa. Não te esqueças de levar o leite.
MIGUEL Eu cumpro. No ano passado—
PAULO Não és diferente dos outros. E o chá.
MIGUEL Sou e interessa. (Pausa) Eu ia casar-me. Em janeiro, já este ano, depois do Natal e das festas todas.
PAULO Eh pá, se eu soubesse que tinha sido a despedida de solteiro, tinha cobrado os meus honorários. Só dormir é mais caro. Pelo menos, devia ser.
MIGUEL (como se não o tivesse ouvido) Eu ia casar-me. Com o Rui. Médico, também. Conhecemo-nos na faculdade. Fizemos o juramento juntos...
PAULO Que romântico.
MIGUEL Namorávamos há uns bons anos, e no ano passado decidimos casar-nos. As coisas não andavam bem, os nossos horários nunca coincidiam, ele andava sempre chateado com isso, estava sempre a queixar-se. Até me disse para ir trabalhar para a clínica dele, mas eu gosto mesmo é do hospital... Por isso, achámos que aquilo podia ajudar. Ele não me pediu em casamento, nem eu a ele. Chegámos à conclusão de que era o melhor, e decidimos tudo. Até já tínhamos visto o sítio. Eu gostava de me casar, sabes? Não era por causa de uma festa, ou para mostrar, nem para defender uma causa. Gostava, pronto. Acredito naquilo. Já tínhamos decidido passar a consoada com a família dele, para os convidar, e o dia de Natal com a minha, para fazer o mesmo. Como também faço anos, era festejo a dobrar, mas...
PAULO Fazes anos?
MIGUEL (anui com a cabeça) Amanhã. Já é hoje. Mas eu estava de serviço, e depois, à noite, ia ficar de banco, por isso não dava para fazer nada. Ele, na clínica, nunca tem estes problemas. Mas eu tinha mesmo de ficar no hospital, e só saía às oito da manhã, por isso não dava para ir à consoada em casa dos pais dele. Ficou tão chateado... Nunca o tinha visto assim. Às vezes, acontecem estas coisas e acabamos com os planos todos furados. Isto não dá para mudar, as pessoas não pedem para ficar doentes. Mas parece que ele não compreende... À última hora, houve uma colega minha que me pediu para trocar e para fazer o meu banco, porque o marido também estava a trabalhar, e não iam passar o Natal juntos de qualquer maneira, e perguntou-me se eu queria trocar. Fiquei tão contente... Nem imaginas.
PAULO Para que é que me estás a contar isso tudo?
MIGUEL (como se não o ouvisse) Então saí às dez e meia. E a minha ideia foi: vou a casa, mudo de roupa e ainda vou ter a casa dos pais dele. A consoada lá é só às dez, por isso, ia muito a tempo. Faço uma surpresa.
PAULO Hum.
MIGUEL Cheguei a casa e a luz da entrada estava acesa. O Rui nunca deixava a luz acesa. Achei que tinha sido eu, mas eu já tinha saído de casa há tantas horas... Se calhar nem reparou. Debaixo do candeeiro estava um papel. Era uma daquelas folhas dos blocos de receitas. Agora já não servem, é tudo informatizado, e tínhamos montes daquilo lá em casa. Tinha um recado para mim. Muito simples, muito curto: «Estou farto. Já não me apetece mais. Acabou. Espero que sejas feliz com os teus doentinhos. Beijos. Rui.
P. S.: Depois combinamos para vir buscar as minhas coisas.»
PAULO Hã?
MIGUEL Só assim. E eu não sabia o que havia de fazer. Eu gostava dele... E comecei a pensar em... E saí de casa à pressa, sem saber muito bem para onde ir, e depois fui àquele bar e depois encontrei-te e... O resto já sabes.
PAULO Tu...
MIGUEL Falei-lhe de ti.
PAULO A quem?
MIGUEL Ao Rui.
PAULO Quando?
MIGUEL Agora.
PAULO Agora? Agora, agora?
MIGUEL Há outro agora?
PAULO Foste ter com ele? O que é que lhe disseste?
MIGUEL Então, dei-lhe a caixa com os livros e os discos que ainda lá estavam em casa. Ele disse que eram para o lixo, e eu disse «faz o que quiseres».
PAULO E eu?
MIGUEL Tu?
PAULO Sim. Falaste-lhe de mim... O que é que disseste?
MIGUEL Disse-lhe que existes. Quem és.
PAULO E?
MIGUEL E o quê?
PAULO O que é que ele disse?
MIGUEL Nada.
PAULO Nada?
MIGUEL Não. Sorriu.
PAULO Sorriu?
MIGUEL Sim.
PAULO Sorriu, como?
MIGUEL Com os cantos da boca...?
PAULO Contaste-lhe tudo?
MIGUEL Nunca houve nada para contar.
PAULO Pois não, mas... Pode haver?
MIGUEL Vai haver. Só que já não lhe vou contar...
Silêncio.
PAULO Chá?
MIGUEL Com duas colheres de açúcar?
PAULO As que quiseres.
JANTAR
Ano seguinte, casa nova. Cozinha. Espaçosa e bem equipada. Um balcão central, onde está o fogão. O lava-louça, ao fundo, encostado à parede, e um frigorífico grande à esquerda. Do lado direito, uma mesa de refeições e quatro cadeiras dispostas em volta.
Bacalhau com todos
Em cima da mesa está um computador portátil, o cinzeiro, colado, um maço de tabaco e um isqueiro. Miguel está ao balcão da cozinha a descascar cebolas. Paulo entra, de pijama, com uma gravata em cada mão.
PAULO Qual delas? Que cheiro é este?
MIGUEL Hã? Cebolas.
PAULO Cebolas? Que é que se passa?
MIGUEL Sim. Nada.
PAULO Pra quê? Tás a chorar...
MIGUEL Para o jantar. É das cebolas.
PAULO Vais fazer o jantar? Tu nunca choraste com cebolas.
MIGUEL Não?
PAULO Estamos juntos há um ano...
MIGUEL Apetecia-me chorar, mas não saía nada.
PAULO A sério. E descascaste cebolas...
MIGUEL Porque não? É tão válido como outra coisa qualquer...
PAULO Hã?
MIGUEL Não vais usar cebolas para o jantar?
PAULO Não.
MIGUEL Não vais?
PAULO Não. Pra quê?
MIGUEL Para o bacalhau.
PAULO É bacalhau cozido, não leva cebola.
MIGUEL Então, estive a descascar as cebolas para quê?
PAULO Pra chorar um bocado?
MIGUEL Não sejas parvo. Vais usar cebolas para o jantar?
PAULO Já disse que não. Porque é que estás assim?
MIGUEL Porra. Olha, então faz tu. Assim, como? Estou aqui todo aflito dos olhos e...
PAULO Eu não te pedi nada, pois não?
MIGUEL Não, mas é tardíssimo e é preciso fazer o jantar. Estiveste o dia inteiro com o nariz enfiado na porcaria do computador, pensei que tivesses desistido de fazer o jantar.
PAULO Que parvoíce. Eu não disse que fazia? São três da tarde.
MIGUEL Sim, mas... Não tiraste os olhos daquilo o dia inteiro. Hoje é véspera de Natal, não se trabalha. E ainda falta fazer as fatias douradas e o arroz-doce e...
PAULO Quando um gajo tem prazos pra cumprir...
MIGUEL Está bem, mas não morre ninguém se te atrasares um dia, não é?
PAULO Também vais trabalhar amanhã, não vais?
MIGUEL Eu...
PAULO O que é que tu tens?
MIGUEL Eu? Nada.
PAULO Tás estranho.
MIGUEL Porquê?
PAULO Diz-me tu.
MIGUEL E as cebolas? Deito fora?
PAULO Não. Põem-se a cozer com o bacalhau e as couves, sempre se aproveitam, vá. (Mostra-lhe a gravata verde; Miguel não presta atenção, está a limpar a bancada) Que tal?
MIGUEL Sabes que não sou grande especialista, mas se achas que vão comer... São todos muito esquisitinhos. Os teus pais não.
PAULO Não, a gravata. Já tinha reparado.
MIGUEL O quê?
PAULO Com o fato. E os sapa—
MIGUEL Ah. Gosto.
PAULO De certeza?
MIGUEL Sim.
PAULO Não me pareces muito convencido.
MIGUEL Sabes bem que não gosto muito de verde...
PAULO Achas que mude?
MIGUEL Não.
PAULO Mas tu não gostas...
MIGUEL Não preciso.
PAULO Mas eu quero que tu gostes.
MIGUEL Eu não tenho de gostar da tua gravata, e tu não tens de a mudar só porque eu não gosto.
PAULO Sim, mas...
MIGUEL Fica bem. Fica bem, no conjunto. Com o fato?
PAULO Sim. Achas? E os sapatos pretos.
MIGUEL Sim.
PAULO Não ficava melhor esta?
MIGUEL (sem olhar) Talvez.
PAULO Esta vai melhor, não é? Combina com o fato. É cinzenta. É só porque depois é tudo da mesma cor e...
MIGUEL (de costas, a lavar as mãos) Cinzenta?
PAULO Sim, tava no—
MIGUEL Tu não tens nenhuma gravata cinzenta.
PAULO Não, mas encontrei uma no roupeiro e...
MIGUEL (vira-se para Paulo) Não acredito.
PAULO O quê? Tava no armário. Já nem te lembravas que a tinhas, não é? Tens tantas.
MIGUEL Essa gravata não é minha. Eu não tenho nenhuma cinzenta. Sabes bem que não gosto de cinzento. Achava que sabias. O que é que isso ainda está cá a fazer?
PAULO Eu não decoro as tuas gravatas. Ficou esquecida? Nem cinzento, nem preto, nem branco. Sim, eu sei.
MIGUEL E não me sabias dizer?
PAULO Que não gostas destas três cores?
MIGUEL Deita-a fora.
PAULO Não deito nada. A gravata tá boa. Parece nova. E é bem bonita. (Lê a etiqueta) «Fatto in Italia». Bem... O gajo trata-se bem. Olha que isto de pôr Botox rende. Rende muito.
MIGUEL Tu não vais usar isso, pois não? Fui eu que lha dei.
PAULO Porque não? Tu?
MIGUEL Paulo... Era para o casamento.
PAULO Pronto... Então temos de a devolver. Pode querer estreá-la.
MIGUEL Achas? Eu sabia. Eu sabia que isto não ia correr bem, eu sabia.
PAULO O quê? Por causa de uma gravata?
MIGUEL Está tudo a dar para o torto, é tardíssimo, tu estás de pijama, nada está feito, daqui a nada está aí toda a gente e... Larga essa gravata, vai fazer o jantar, vai-te vestir, vai...
PAULO Ei. Calma. São três da tarde.
MIGUEL Sim, e daqui a nada...
PAULO Daqui a nada vai estar tudo pronto.
MIGUEL Mas a gravata...
PAULO Esquece a merda da gravata, pode ser?
MIGUEL Mas...
PAULO Esquece.
Silêncio. Miguel tira um saco de couves do frigorífico e começa a separar as
folhas freneticamente.
PAULO Se calhar nem vou pôr gravata nem nada. Que é que tás a fazer?
MIGUEL O jantar.
PAULO Larga isso, eu já faço. Não se usa gravata nestas coisas, pois não?
MIGUEL Fazes quando? Depois de chegar toda a gente? Depende. Usa.
PAULO Não, ninguém usa.
MIGUEL Nós usamos. O meu pai, o meu... Vou adiantando isto. Senão, nunca mais é dia. Usa, se quiseres. Fica bonita. Mas a outra, a verde. Fica-te bem. Condiz com os olhos.
PAULO Eu não tenho olhos verdes. O meu pai e o meu irmão não vão usar gravata.
MIGUEL Pois não. Qual é o mal? Por isso mesmo. Faz contraste. Deitas fora?
PAULO Não, essas folhas são boas. Tira só as pontinhas.
MIGUEL A gravata. Deita-a fora, por favor.
PAULO Vou dá-la a uma associação qualquer. Tenho ali mais umas coisas que já não uso e junto tudo. Pode ser? E larga isso, que eu já venho fazer o jantar.
Miguel continua a arranjar as couves. Paulo sai com as gravatas; volta pouco depois, só com a gravata verde.
PAULO Ajuda-me aqui a fazer o nó. Baralho-me todo. Devia ter aprendido com o meu pai. Há sempre aqui umas voltinhas... Miguel?
MIGUEL Sim?
PAULO Ajuda-me aqui. Descascaste mais cebolas?
MIGUEL (faz o nó no próprio pescoço) Não, porquê?
PAULO Parece que tás a chorar...
MIGUEL É impressão. Toma.
PAULO Obrigado. Tás bem?
MIGUEL Não.
PAULO Queres ir pôr a mesa?
MIGUEL (afirmativo) Hã, hã. Vens comigo?
PAULO Tenho de fazer o jantar.
Paulo vai para trás do balcão e começa a tratar das coisas. Miguel sai.
Paulo chora. Não descascou mais cebolas. A luz baixa.
Fatias douradas
Uma panela ao lume, em cima do fogão. Paulo está sentado à mesa da cozinha, a trabalhar no computador. Está um tabuleiro com fatias douradas em cima da mesa. O cinzeiro de vidro também lá está. Ao lado, um maço de tabaco, amarrotado, outro cheio, e um isqueiro. Paulo tem a mão esquerda pousada sobre o cinzeiro. Miguel entra, anda de um lado para o outro, impaciente. Paulo não reage.
MIGUEL (levanta a tampa da panela) Isto nunca mais ferve. (Pausa; para Paulo, indicando o cinzeiro) Ainda precisas?
PAULO (sem desviar os olhos do computador) De quê?
MIGUEL Do cinzeiro.
PAULO Hummm...
MIGUEL Precisas?
PAULO Não sei.
MIGUEL Estás a fumar?
PAULO Não vês que não?
MIGUEL Mas vais fumar.
PAULO Se me apetecer.
MIGUEL Pois. E apetece?
PAULO Sei lá.
MIGUEL Como não sabes?
PAULO Não sei se me apetece.
MIGUEL Olha, a mim apetece.
PAULO O quê?
MIGUEL Fumar.
PAULO Hã? A sério?
MIGUEL O que é que tem?
PAULO Nada.
MIGUEL Então?
PAULO Fuma...
MIGUEL Não tenho cinzeiro.
PAULO Tá aqui.
MIGUEL Tens a mão dentro do cinzeiro.
PAULO Tenho?
MIGUEL Tens.
PAULO Ah. Pois tenho.
MIGUEL Como é que alguém se esquece de que tem a mão dentro do cinzeiro?
PAULO Realmente... O que é que achas? (Vira o portátil para Miguel, de modo que consiga ver o ecrã)
MIGUEL É bonito.
PAULO É bonito? Só isso?
MIGUEL O que é que queres que diga mais?
PAULO Não sei, qualquer coisa. Isto, hoje, não tá a sair.
MIGUEL Mas está bonito. A sério.
PAULO O equilíbrio das cores parece-te bem?
MIGUEL Sim. Mas porque é que estás a perguntar? Nunca me mostras as coisas antes de acabares.
PAULO E as dimensões?
MIGUEL Está... Se calhar um bocadinho maior? /
PAULO É isso mesmo.
MIGUEL / Mas pode ser de mim, como sou míope...
PAULO Não, é isso mesmo. Muito obrigado.
Paulo continua a trabalhar afincadamente. Miguel continua parado, à espera do cinzeiro.
MIGUEL Precisas do cinzeiro?
PAULO Já disse que não.
MIGUEL Então porque é que estás com ele na mão?
PAULO Porque estive a fumar. Há bocado fumei um cigarro. Tá aqui a beata. As beatas. Porra, já fumei isto tudo?
MIGUEL Mas agora não estás.
PAULO Não tou o quê?
MIGUEL A fumar.
PAULO Não vês que não?
MIGUEL Paulo.
PAULO Sim?
MIGUEL Vais fumar ou não?
PAULO Não. Porra, que impaciência por causa de um cinzeiro.
MIGUEL Quero fumar um cigarro.
PAULO Então, fuma.
MIGUEL Não posso.
PAULO O que é que te impede?
MIGUEL Tu. Estás aí agarrado a isso, e não largas o cinzeiro.
PAULO O que é que tem?
MIGUEL O que é que tem?
PAULO O que é que tem o quê?
MIGUEL Isto assim não dá.
PAULO Isto?
MIGUEL Isto, de eu... Eu quero usar o cinzeiro.
PAULO Então, usa.
MIGUEL Não posso.
PAULO Porquê?
MIGUEL Porque tu estás com a mão aí dentro.
PAULO E?
MIGUEL E? E eu preciso dele, porra.
PAULO Porque é que não disseste logo?
MIGUEL Mas eu... Posso usar o cinzeiro?
PAULO Claro. Porque é que não perguntaste logo?
MIGUEL Eu perguntei, tu é que... Emprestas-me o cinzeiro?
PAULO Claro.
MIGUEL Dá-me o cinzeiro, se faz favor.
PAULO Toma.
Miguel agarra no cinzeiro com um movimento brusco e este separa-se em dois. Paulo repara, fica irritado, mas esforça-se por não reagir. Miguel fica ainda mais nervoso e irritado.
MIGUEL Porra. Não percebo. A sério, não percebo. Nunca nada funciona. Nada. Está sempre tudo em cacos.
PAULO Sim.
MIGUEL Estás a ver? Não me estás a ligar nenhuma. Acabei de partir o cinzeiro – o teu cinzeiro – e tu não dizes nada.
PAULO Que queres que diga?
MIGUEL Nunca reparas em mim. Nunca reparas em nada do que eu faço.
PAULO Mas eu reparo em ti. Se não reparasse, não sabia que tinhas partido o cinzeiro três vezes desde que estamos juntos.
MIGUEL Não, para. Podes parar. A sério. Podes ficar aí a trabalhar, podes morrer a trabalhar que eu não quero saber. Toma lá o teu cinzeiro. Cola-o. Estou farto.
PAULO Não vou fumar. Não o vou colar agora, tenho de acabar isto.
MIGUEL Não me interessa. Ficas com o cinzeiro.
PAULO Como queiras. Já não precisas?
MIGUEL Não.
PAULO Mas não chegaste a fumar.
MIGUEL Não dá para usar.
PAULO Cola-o.
MIGUEL Eu?
PAULO Porque é que tenho de ser sempre eu a consertar os cacos?
Silêncio. Miguel vai ver a panela.
MIGUEL A água já está a ferver. Tu já não gostas de mim?
PAULO Eu? Põe o bacalhau lá dentro.
MIGUEL Sim. Onde é que está?
PAULO Aí atrás, dentro do alguidar. Que parvoíce.
MIGUEL Então por que raio não me ligas nenhuma?
PAULO Isto assim não funciona.
MIGUEL Finalmente.
PAULO Tenho de pôr o logótipo maior.
MIGUEL O quê? Então tu... Olha, são sete e meia. Daqui a nada estão as pessoas a chegar, e tu aí.
PAULO Quando as pessoas chegarem, eu não vou tar aqui a trabalhar.
MIGUEL Então vais estar onde? Não me digas que vais para o quarto trabalhar e me vais deixar aqui sozinho a receber as pessoas e—
PAULO Quando as pessoas chegarem, eu vou tar aqui ao teu lado com um sorriso estúpido para as receber.
MIGUEL Mas—
PAULO (fecha o computador e vai para junto do fogão) Vou parar de trabalhar e vou fazer o jantar. Depois vou-me vestir, pôr a gravata verde que a tua mãe me deu, ou a castanha, ou a azul, ou uma das três mil e quinhentas gravatas que ela me deu, porque ainda não percebeu que eu não uso gravata – acho que continua enganada no genro –, e colar um sorriso estúpido na minha cara ainda mais estúpida, porque as pessoas não percebem que o dia 24 de dezembro é um dia como outro dia qualquer, e que se eu quiser pagar a renda da casa...
MIGUEL Nós não pagamos renda.
PAULO Não, mas o—
MIGUEL Nem empréstimo. A casa está paga há anos...
PAULO Mas se eu quiser... Cumprir o prazo que combinei com o cliente... Sim, porque eu tenho prazos para cumprir... Tenho de trabalhar e...
MIGUEL Acabas amanhã. Não vais entregar o trabalho hoje, pois não? Ponho o grão?
PAULO Claro que não, já está cozido. E porque não acabar isto hoje, e assim passamos algum tempo juntos amanhã?
MIGUEL Sabes bem que amanhã não estou em casa. Estou de serviço o dia todo.
PAULO Mas eu tenho de parar quando tu queres. É isso? Porque temos todos de comer bacalhau e fatias douradas e bolo-rei e as outras merdas todas que se comem hoje, e receber uma data de gente cá em casa, porque... Porque sim. Porque tu decidiste que este ano é cá em casa. Sem me consultares. Mas eu aceitei. Pra quê discutir? É só um jantar. É só um bacalhau cozido e mais umas coisas. Pra quê discutir, não é? Eu já sei como funcionam as coisas, porquê o espanto? Eu tenho de jantar, de qualquer maneira, por isso... Eu preparo tudo para o jantar – até cozinho bem –, mas ainda agora querias atenção. Se fizer o jantar, não te posso dar atenção. Se te der atenção, não posso preparar as coisas para o jantar. Se calhar é melhor decidires e depois comunicares-me o que devo fazer. Trabalhar não é uma opção, pois não? Amanhã também não tás em casa. E, ainda por cima, são os teus anos...
MIGUEL Que queres que te responda?
PAULO A verdade. Preferes atenção ou jantar? Eu prefiro dar-te atenção, mas tu é que sabes.
MIGUEL Isto é importante para mim.
PAULO Porquê?
MIGUEL Porque sim. É o nosso primeiro Natal.
PAULO Não, é o terceiro.
MIGUEL Oh, juntos.
PAULO É o terceiro.
MIGUEL Tu sabes o que eu quero dizer. Queres o quê, que eu cancele o jantar de Natal? Que eu cancele o Natal?
PAULO Sim.
MIGUEL Hã?
PAULO Precisamente. Onde puseste as cebolas?
MIGUEL Mas... E digo o quê? Que desculpa é que ia arranjar? Frigorífico.
PAULO Desculpa? Nenhuma. Se for pra cancelar o jantar, é pra dizer a verdade. É pra dizer que eu não gosto do Natal e que quero passar uma noite descansado a dar-te atenção. Passa-me o sal. Só nós os dois. Sem terceiros.
MIGUEL Na noite de Natal? Toma.
PAULO Não era o que tu querias, ainda agora?
MIGUEL Não, eu... Sim, era, mas não na noite de Natal. Não hoje.
PAULO Então, vieste interromper o meu trabalho porquê? Pimenta.
MIGUEL Porque eu quero atenção, quero estar contigo, só nós dois, sem ninguém para nos chatear. Onde está? Mas tem de ser agora, porque daqui a nada vai estar a casa cheia de gente, e amanhã estou de serviço, e...
PAULO E eu tenho de ter tempo agora? Terceira gaveta.
MIGUEL Claro. É noite de Natal. Não é suposto desmarcar o jantar da consoada só porque queremos estar juntos, não é? (Mostra-lhe um moinho de especiarias) É isto? (Paulo anui) Temos mais 364 dias no ano para fazer isso.
PAULO Dá cá. Mesmo que isso ponha em causa o nosso casamento?
MIGUEL O quê? Que queres que faça?
PAULO Tu é que sabes...
Paulo acaba de pôr as coisas na panela e volta para o computador. Miguel fica parado, sem reagir. Depois encaminha-se para a saída. Hesita. Volta atrás. Acaba por sair. Demora-se. Paulo fica sozinho durante algum tempo.
Miguel regressa.
MIGUEL Pronto. Já está.
PAULO O quê?
MIGUEL Já está.
PAULO Já está...?
MIGUEL Sim, já está. Tudo cancelado.
PAULO Cancelado? O quê?
MIGUEL Não há jantar de Natal para ninguém este ano. Este ano é só para nós. Só para nós os dois. Contente? Vá, agora beija-me.
PAULO Cancelado?
MIGUEL Sim.
PAULO O que é que fizeste?
MIGUEL Então, telefonei a toda a gente e...
PAULO Telefonaste aos meus pais?
MIGUEL Sim.
PAULO E aos teus?
MIGUEL Claro.
PAULO E disseste aos teus...?
MIGUEL A toda a gente. Toda.
PAULO E o que é que disseste?
MIGUEL Disse que estava cancelado.
PAULO Disseste?
MIGUEL Sim.
PAULO A sério?
MIGUEL Sim.
PAULO Mas, mas, assim, sem mais nem menos?
MIGUEL Sim.
PAULO O que é que disseste? Conta-me.
MIGUEL Então, disse que tu... que eu... que não...
PAULO Disseste a verdade...
MIGUEL Pois. Disse. Disse a verdade. Disse que tu... Que tu... Disse que tinhas apanhado uma virose e que é contagioso e que não podes ter contacto com outras pessoas, porque podes correr o risco de contagiar alguém. Eu ainda não apanhei, mas é possível que venha a apanhar, por isso também é melhor não sair de casa nem receber visitas. Pronto, foi isto. Contente? Está descansado, a tua mãe não está preocupada. Pronto, está um bocadinho, claro, é normal, é mãe, mas sabe que eu estou a tratar de ti e que estás em boas mãos e—
PAULO Tou?
MIGUEL Claro. Sou médico, não é?
Paulo está perplexo.
PAULO É?
MIGUEL Contente?
PAULO Eu... Eu vou sair.
MIGUEL O quê? Depois de ter inventado isto tudo para ficarmos só os dois, juntos, tu deixas-me aqui sozinho? Eu não... O que é que eu faço? E o jantar? Estás a ouvir? Espera aí. E as pessoas? E se encontras alguém na rua? Digo-lhes o quê? Com que cara é que fico? Aonde é que vais, a esta hora? Não me digas que...
Paulo sai. Miguel fica a falar sozinho.
MIGUEL (grita para fora) Ao menos traz cola... (Ouve-se a porta bater; continua, em voz baixa) Se achares que vale a pena...
Leite morno com mel
O mesmo espaço, algumas horas depois. A panela continua em cima do fogão. O cinzeiro partido continua em cima da mesa. O tabuleiro das fatias douradas está quase vazio. Miguel está sentado à mesa.
PAULO (entrando na cozinha) Olá...
MIGUEL Paulo? Voltaste.
PAULO Já comeste?
MIGUEL Estava à tua espera. E tu, já?
PAULO Não.
MIGUEL Aquilo já está frio.
PAULO Aquece-se outra vez. Tens fome?
MIGUEL Mais ou menos. (Destapa o tabuleiro das fatias douradas)
PAULO Comeste isso tudo?
MIGUEL Deixei duas... Demoraste...
PAULO Foi difícil. (Tira um pequeno saco do bolso) Tá tudo fechado.
MIGUEL O quê?
PAULO As lojas. Até os chineses agora já fecham na véspera de Natal. (Dá o saco a Miguel)
MIGUEL O que é isto? Cola?
PAULO Não encontrei mais nada...
MIGUEL Achas que esta dá?
PAULO Dá-se um jeito. A gente dá sempre um jeito, não é?
MIGUEL (sorri) Sim...
PAULO Queres comer primeiro?
MIGUEL Não tenho muita fome. E o cinzeiro?
PAULO Uma fatia pra cada um, pra entreter, enquanto o colamos?
MIGUEL Não comemos o bacalhau?
PAULO A seguir... Pequeno-almoço... Temos a noite toda.
MIGUEL Para comer?
PAULO E colar o cinzeiro...
A luz baixa devagar, enquanto falam.